PRIMEIRO CAPÍTULO DE COMPROMETIDA
“Não
sabia se seria o início ou o meu fim, mas tinha certeza que jamais seria a mesma
depois daquela temporada.”
Chegada
Se luz é um bom sinal, tenho certeza
que chegamos com bons ares ao litoral da Paraíba, uma cidadezinha de praia no
meio do nada, o sol estava literalmente fervendo. No primeiro instante percebi
que se tratava de uma cidade ensolarada, banhada por águas cristalinas e muito
calor. Estamos em pleno verão, muitas pessoas iriam aproveitar as férias, a
praia estará lotada, ideal para uma comunidade de ciganos nômades que ganha a
vida com o comércio. Esse foi meu primeiro pensamento ao olhar pelas frestas da
cortina do carroção.
Despertamos
muita curiosidade e instigamos vários olhares, pois somos no mínimo para quem
nos olha ‘misteriosos’,
e isso faz parte do nosso cotidiano em cada cidade que nos instalamos.
Costumamos despertar interesse e fazemos uso de todo esse mistério que nos
cerca, seja por nossas danças, por nossos costumes, ou mesmo, por nossa vida um
tanto desregrada para muitas pessoas. Ao passar pela cidade podemos perceber as
conversas e olhares das pessoas curiosas, eufóricas com a nossa chegada,
querendo saber quem somos e o porquê de estarmos ali.
Seguimos
caminho por entre a mata descampada da região para encontrar a propriedade
“Estrela Nova”. Esta propriedade é uma terra cigana, pertencente a um membro do
nosso clã que se estabeleceu na região do sul, mas que a deixou nas mãos do meu
avô caso precisasse assentar naquela região. Apesar de muito grande, em toda a
área só existia uma identificação que era uma placa com o nome da propriedade.
Ao pararmos em frente, pude afastar a cortina do carroção e olhar o horizonte,
o verde da mata se encontrando com uma linhazinha do mar ao longe, era
realmente, a imagem mais linda que tinha visto nos últimos tempos.
O
sol brilhava forte, saímos dos carroções e começamos a assentar, minha família e
as várias outras que compunham nossa comunidade. Não existia portão ou muro que
demarcasse a área, ela era aberta e a imagem daquele lugar era a natureza por
toda parte, árvores com
frutas
que eram exibidas de forma atraente e apetitosa, pássaros e ao longe o mar. Em
um espaço formado entre as árvores, os
homens
do nosso clã tomaram toda a manhã para retirar o mato e deixar a areia branca e
firme, pois precisávamos de um espaço em que pudéssemos parar os carroções em
círculo.
Apesar
de vivermos de forma itinerante, formamos uma comunidade simples e liderada por
um comerciante. Algumas famílias do
nosso clã vêm se fixando e passam a viver de forma sedentária em propriedades,
outras continuam viajando, como é o nosso caso. Nossa comunidade viaja muito e
sempre se instala em lugares diferentes. Passamos pouco tempo em cada lugar,
tempo suficiente para se sustentar, conhecer e guardar a terra. Hoje chegamos
cedo, numa manhã de domingo e nos instalamos nessa propriedade nos arredores da
cidade.
Como
sempre, viajava reclamando, e todas as vezes por essa mudança constante, não
queria viver assim, mudando de lugar a cada três meses, mas nosso clã precisava
disso, seguir e parar para descansar. Não seria nossa meta parar aqui, porém,
nesse descanso, o ‘Conselho de idosos’ liderado por meu avô Cassiano, resolveu
que seria bom para o nosso povo passar um tempo na calmaria antes de mudar para
uma região mais árida num período tão quente como agora.
Nossa
família lidera esse clã há muitos anos, o líder mais antigo e vivo é meu avô
Cassiano, hoje líder do ‘Conselho de anciãos’. Ele quem decidiu que
precisávamos ficar
e seu conselho é respeitado porque é um sábio entre nosso povo. É um homem
forte, determinado e destemido, apesar de ter em torno de setenta anos. Embora
tenha tantas marcas de expressão no rosto envelhecido e várias rugas que tentam
cobrir seus olhos, ele tem um olhar muito carinhoso e conhecedor. Seu cabelo
branco e ralo, sobre os ombros, mantém a mesma beleza, a pele morena e os olhos
negros guardam uma alma amorosa. Os mais velhos do clã dizem que na juventude
ele era “um conquistador”, fazia as mulheres suspirarem. Hoje é um sábio, é
quem julga e orienta os caminhos. Geralmente, tem uma seriedade que assusta,
mas esconde um coração muito grande.
Ao
terminar a limpeza para a retirada do mato, os homens instalaram as carroças de
maneira circular entre uma árvore e outra, nós mulheres abrimos as portas,
estendemos cortinas e embelezamos tudo com flores. Os homens começaram a
iluminar o local, pois rapidamente passou o dia e a noite logo iria chegar.
Foram acendendo os lampiões e colocando suspensos em árvores e nos carroções.
Nós mulheres fomos montando a mesa grande para as refeições, cobrindo com
toalhas coloridas e flores, e para o centro do círculo levamos pedaços de
madeira para acender a fogueira da noite. Cada um dos carroções acomodava
famílias, desde os velhos avós, até os bisnetos, pois somos uma comunidade
relativamente grande.
Tínhamos
animais e vivíamos do comércio de joias e artesanato. Além de termos
negociantes, mecânicos e lanterneiros em nosso clã, todos são mercadores
ambulantes. Nossa dança e música também nos rendem algum dinheiro, muito pouco,
é bem mais divertimento que trabalho, como também a leitura das mãos, cartas e
feitiços. Meu pai Ávila, é um homem abastardo e líder do nosso povo, é de uma
família próspera e antiga na liderança do clã. Sempre teve um dom grandioso com
os tratos dos negócios, tinha habilidade com o comércio e facilmente conseguia
convencer os seus clientes, é sábio, calmo, verdadeiro e centralizador, e
apesar de ter apenas quarenta e cinco anos demonstra um olhar muito sofrido e
amargurado que delineia seu rosto sério, apesar do coração gentil. Ele é um
homem cobiçado, alto com pouco mais de 90 kg, olhos azuis e vivos como os da
minha avó Esmeralda. Cabelos compridos, lisos e negros, usa um cavanhaque um
tanto charmoso que combina muito com a sua pele morena. Ele é um verdadeiro
líder, comanda, mas busca ouvir a todos, inclusive meu avô Cassiano, que ao
dizer que tínhamos de ficar foi atentamente obedecido. Meu avô e meu pai são
extremamente conservadores na sua liderança e por isso seguimos quase todas as
antigas tradições.
As
comunidades ciganas geralmente são ágrafas, porém, contrariamos um pouco nossas
tradições quando eu aprendi a ler e a escrever e, com isso, comecei a trabalhar
na educação
de todos para que nossa história se perpetuasse de forma escrita.
Até os dias atuais nossos antepassados
asseguraram
nossa história de forma fragmentada por meio da tradição oral. O que se
perpetuou sobreviveu pelas rodas em torno da fogueira, onde os pais contavam
para os seus filhos a origem do nosso povo. De qualquer forma, escrevendo ou
não, sempre procuramos preservar nossa cultura vivendo de acordo com as antigas
tradições.
Durante
o dia nosso povo se divide em tarefas, acordamos muito cedo, os homens cuidam
dos animais, do comércio e do artesanato. As mulheres cuidam da comida, da
organização da comunidade e depois se voltam para a confecção do artesanato,
principalmente com pedrarias e lenços. As mulheres também dançam e se preparam
para o casamento.
A
dança é uma das minhas paixões e uma característica forte do nosso povo.
Dançamos para nos divertir, gostamos das batidas da música e da alegria. As
mulheres do nosso povo ao dançar enfeitiçam quem as observa e desperta o desejo
de olhar e entender o porquê dos nossos passos. Nossa dança sempre provoca e
rouba olhares em todos os lugares aonde chegamos, é cheia de ritmos e batidas,
misturamos a alegria da rumba, a sensualidade da salsa, a força do flamenco, a
beleza e o desejo da dança do ventre, e assim, compomos coreografias para cada dança
cigana, e em cada uma delas escondemos uma infinidade de significados próprio
do nosso povo.
Ao
final da tarde tínhamos terminado de organizar tudo, então começamos a nos
preparar para conhecer a cidade, corri para me produzir porque íamos nos
apresentar na praça. É uma tradição nossa, em toda cidade que chegamos, fazemos
uma apresentação de dança no centro da cidade. É uma maneira de dizer que
chegamos. Apaixonei-me pela dança muito cedo, meu avô fala que sou parecida com
minha avó que também era dançarina, e apesar de não ser cigana de origem seguiu
meu avô e aprendeu muito da nossa cultura.
Por
volta de seis horas da tarde, seguimos caminhando em grupo para a praça da
cidade. Estávamos em um grupo de oito pessoas, composto de homens e mulheres
todos vestidos a caráter, com cores fortes como preto e vermelho destoando no
branco. Eu sorria para as pessoas tal como convite, pois, apesar de ter sido
criada para o casamento prometido, vivia minha juventude com toda intensidade
que me era permitida. Estava de vestido longo, de saia rodada vermelho-sangue
que realçava na minha pele morena e no meu corpo magro delineado por uma
cintura fina e um quadril largo, que segundo Brida, a sacerdotisa, me
proporcionaria a chance de ser uma boa ‘parideira’ e trazer muita alegria à
família de meu marido. No meu cabelo negro e comprido usava uma rosa grande e
vermelha que se destacava com o brilho dos meus fios.
Os
olhares da praça começavam a se direcionar para nós, as pessoas se aproximavam
enquanto nos posicionávamos,
e aos poucos foi se formando aquele círculo de curiosos de todas as idades. Era
noite, lua cheia e inúmeras estrelas no céu. Numa parte vazia da praça
acendemos as tochas e em meio ao fogo, as batidas dos instrumentos e ao som de
música cigana começamos a dançar. Muitos acompanhavam impressionados, talvez
nunca tivessem visto tão de perto um grupo de ciganos, mas misturava-se no
olhar uma sombra de medo e encantamento, um desejo secreto de descobrir nossos
mistérios. Muitos batiam palmas acompanhando as batidas do nosso som e sorriam
alegres junto conosco, mas dentre a esses olhares um em mim permaneceu imóvel,
nos conectamos a cada giro meu, o meu olhar procurava o dele, que nada parecia
ver se não a mim. Seu olhar perturbava-me, via-me mais do que eu permitia. O
que é isso me tomando? Não entendo como pode me olhar assim? Perguntava-me a
todo instante. Parecia que eu dançava para ele. Por um momento, pareceu que não
existia som ou multidão, parecia estar ele e eu.
Sem
que esperássemos a energia acabou e de repente tudo escureceu, as luzes que
iluminavam a praça agora eram apenas da lua, das estrelas e do fogo de nossas
tochas. Nossa apresentação passou a ter mais brilho, o som da nossa música
ecoava em toda praça, agora nada poderia se ver de forma nítida, apenas os
vultos de quem nos olhava de perto.
As
pessoas em busca de luz se aproximavam mais, as mulheres sorriam e batiam palma
junto com a batida da música, os homens nos olhavam por inteiro tentando nos decifrar, e
aquele olhar, aquele olhar permanecia imóvel. Quando a música terminou e
começamos outra dança não mais o encontrei, ele não estava mais, senti que
aquele olhar se perdeu na multidão, durante todo o tempo que continuamos na
praça não mais o encontrei, embora tenha passado o resto da música o
procurando. Quem seria ele? Era a única coisa que ressoava na minha mente, quem
era daquele olhar?
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Oi, Márcia....
ResponderExcluirVc escreveu na primeira pessoa... isso deve ser difícil... ou não... mas o primeiro capítulo é interessante...
Uma boa sorte pra vc!
Beijos